sexta-feira, 26 de abril de 2013

A retaliação entre os Poderes



A separação entre Poderes, base de uma democracia republicana, tem proporcionado um curioso cabo-de-guerra em sua versão brasileira. No ano passado, ministros do Supremo Tribunal Federal, a mais alta instância do Judiciário, mandaram uma ordem à Câmara dos Deputados para cassar os parlamentares condenados no processo do “mensalão”, algo que, em qualquer país do mundo, cabe aos próprios pares.
O embate mais recente foi a decisão do ministro Gilmar Mendes de suspender, na quarta-feira 24, a tramitação do projeto de lei que deve dificultar a criação de novos partidos no Brasil. A liminar em mandado de segurança foi concedida a pedido do senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF).
O projeto, patrocinado pelo Planalto, impede que partidos recém-criados ou fundidos tenham acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de tevê na propaganda eleitoral. Sem essas benesses, futuras legendas como a Rede Sustentabilidade de Marina Silva e o Movimento Democrático de Roberto Freire – potenciais adversários de Dilma Rousseff em 2014 – dificilmente atrairiam adeptos e se viabilizariam para a disputa eleitoral.
A proposta foi aprovada na Câmara e tramitaria no Senado. Antes de sua apreciação, o ministro do STF determinou a suspensão sob o argumento de que houve “aparente tentativa casuística” de se mudar as regras – algo que, também em qualquer lugar do mundo, caberia aos parlamentares dizer. Segundo Mendes, a “ilegalidade” fica aparente devido à “extrema velocidade” em que o projeto foi votado.
“A aprovação do projeto de lei em exame significará, assim, o tratamento desigual de parlamentares e partidos políticos em uma mesma legislatura. Essa interferência seria ofensiva à lealdade da concorrência democrática, afigurando-se casuística e direcionada a atores políticos específicos”, disse.
A interferência causou a revolta de parlamentares, caso do senador Humberto Costa (PT-PE). “O Supremo pode se manifestar sobre leis, mas interromper um processo de votação é algo absurdo. Imagine se o Congresso for definir quando o Supremo se reúne ou outras decisões que cabem aos ministros? Isso quebra a harmonia entre os Poderes”, disse.
No mesmo dia, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, integrada pelos deputados condenados no “mensalão” José Genoino e João Paulo Cunha, aprovou um texto que submete as decisões do Supremo ao Congresso Nacional. Pelo projeto, senadores e deputados poderiam dar a última palavra do entendimento à Constituição – papel que, só para lembrar, em qualquer lugar do mundo cabe à Suprema Corte.
A proposta ainda precisa ser analisada por uma comissão especial antes de ir a plenário e o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) já avisou que não pretende instalar o grupo “enquanto não tiver uma definição muito clara de que é o respeito, a harmonia de poderes”.
Um dia antes, o ministro do STF Marco Aurélio Mello, ao analisar a proposta, citou a cláusula pétrea da Constituição sobre a separação entre Poderes. “A última palavra não cabe ao setor político, cabe ao Judiciário. O guarda da Constituição é o Supremo”, lembrou.
Segundo o ministro, a proposta soa como uma retaliação por decisões tomadas recentemente pelo Supremo.
Para o ministro Gilmar Mendes, o mesmo que determinou quando e como parlamentares devem apreciar um projeto, a proposta “evoca coisas tenebrosas”. Ele lembrou a Constituição de 1937, concebida no regime do Estado Novo de Getúlio Vargas, que permitia a submissão de decisões do Judiciário à Presidência da República. “Acredito que não é um bom precedente, a Câmara vai acabar rejeitando isso”.
Mendes disse que os movimentos do Legislativo contra o Supremo são marcados “por decepções, frustrações imediatas”, equilibradas posteriormente por decisões que agradam à maioria. “É preciso ter muito cuidado com este tipo de interação e acredito que, em geral, tem-se sabido valorizar a democracia, o Estado de direito, e acredito que será assim que a Câmara encaminhará”.
Os dois ministros criticaram trecho da proposta que aumenta o quórum para declaração de inconstitucionalidade, de seis para nove votos. A Corte tem 11 ministros e geralmente está desfalcada devido a aposentadorias – agora, por exemplo, aguarda o substituto de Carlos Ayres Britto, que se aposentou em novembro do ano passado.
O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, disse não conhecer o texto que tramita no Congresso, mas que “à primeira vista, é algo que causa perplexidade do ponto de vista constitucional”. Segundo ele, a proposta “não parece casar muito bem com a harmonia e independência entre os poderes”.
Como ressaltou o jurista Pedro Serrano, colunista de CartaCapital, em artigo publicado no Estado de S.Paulo, “se por um lado é verdade que nossa Suprema Corte tem invadido competência do Legislativo (…), de outra há que se considerar que não é por meio de inconstitucionalidades não republicanas que nosso Legislativo resolverá o problema”.
Se os projetos avançarem, a divisão de Poderes cairá num fosso institucional em que juízes barram tramitação de projeto de lei e legisladores julgam o julgamento da Corte. A cacofonia da situação descrita não limita o absurdo: no fim das contas, o bate-boca sobre quem manda em quem é um terreno pavimentado para o autoritarismo.
Extraído da Carta Capital

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