A separação
entre Poderes, base de uma democracia republicana, tem proporcionado um curioso
cabo-de-guerra em sua versão brasileira. No ano passado, ministros do Supremo
Tribunal Federal, a mais alta instância do Judiciário, mandaram uma ordem à
Câmara dos Deputados para cassar os parlamentares condenados no processo do
“mensalão”, algo que, em qualquer país do mundo, cabe aos próprios pares.
O embate
mais recente foi a decisão do ministro Gilmar Mendes de suspender, na
quarta-feira 24, a tramitação do projeto de lei que deve dificultar a criação
de novos partidos no Brasil. A liminar em mandado de segurança foi concedida a
pedido do senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF).
O
projeto, patrocinado pelo Planalto, impede que partidos recém-criados ou
fundidos tenham acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de tevê na propaganda
eleitoral. Sem essas benesses, futuras legendas como a Rede Sustentabilidade de
Marina Silva e o Movimento Democrático de Roberto Freire – potenciais
adversários de Dilma Rousseff em 2014 – dificilmente atrairiam adeptos e se
viabilizariam para a disputa eleitoral.
A
proposta foi aprovada na Câmara e tramitaria no Senado. Antes de sua
apreciação, o ministro do STF determinou a suspensão sob o argumento de que
houve “aparente tentativa casuística” de se mudar as regras – algo que, também
em qualquer lugar do mundo, caberia aos parlamentares dizer. Segundo Mendes, a
“ilegalidade” fica aparente devido à “extrema velocidade” em que o projeto foi
votado.
“A
aprovação do projeto de lei em exame significará, assim, o tratamento desigual
de parlamentares e partidos políticos em uma mesma legislatura. Essa
interferência seria ofensiva à lealdade da concorrência democrática,
afigurando-se casuística e direcionada a atores políticos específicos”, disse.
A
interferência causou a revolta de parlamentares, caso do senador Humberto Costa
(PT-PE). “O Supremo pode se manifestar sobre leis, mas interromper um processo
de votação é algo absurdo. Imagine se o Congresso for definir quando o Supremo
se reúne ou outras decisões que cabem aos ministros? Isso quebra a harmonia
entre os Poderes”, disse.
No mesmo
dia, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, integrada pelos deputados
condenados no “mensalão” José Genoino e João Paulo Cunha, aprovou um texto que
submete as decisões do Supremo ao Congresso Nacional. Pelo projeto, senadores e
deputados poderiam dar a última palavra do entendimento à Constituição – papel
que, só para lembrar, em qualquer lugar do mundo cabe à Suprema Corte.
A
proposta ainda precisa ser analisada por uma comissão especial antes de ir a
plenário e o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) já avisou
que não pretende instalar o grupo “enquanto não tiver uma definição muito clara
de que é o respeito, a harmonia de poderes”.
Um dia
antes, o ministro do STF Marco Aurélio Mello, ao analisar a proposta, citou a
cláusula pétrea da Constituição sobre a separação entre Poderes. “A última
palavra não cabe ao setor político, cabe ao Judiciário. O guarda da
Constituição é o Supremo”, lembrou.
Segundo o
ministro, a proposta soa como uma retaliação por decisões tomadas recentemente
pelo Supremo.
Para o
ministro Gilmar Mendes, o mesmo que determinou quando e como parlamentares
devem apreciar um projeto, a proposta “evoca coisas tenebrosas”. Ele lembrou a
Constituição de 1937, concebida no regime do Estado Novo de Getúlio Vargas, que
permitia a submissão de decisões do Judiciário à Presidência da República.
“Acredito que não é um bom precedente, a Câmara vai acabar rejeitando isso”.
Mendes
disse que os movimentos do Legislativo contra o Supremo são marcados “por
decepções, frustrações imediatas”, equilibradas posteriormente por decisões que
agradam à maioria. “É preciso ter muito cuidado com este tipo de interação e
acredito que, em geral, tem-se sabido valorizar a democracia, o Estado de
direito, e acredito que será assim que a Câmara encaminhará”.
Os dois
ministros criticaram trecho da proposta que aumenta o quórum para declaração de
inconstitucionalidade, de seis para nove votos. A Corte tem 11 ministros e
geralmente está desfalcada devido a aposentadorias – agora, por exemplo,
aguarda o substituto de Carlos Ayres Britto, que se aposentou em novembro do
ano passado.
O
procurador-geral da República, Roberto Gurgel, disse não conhecer o texto que
tramita no Congresso, mas que “à primeira vista, é algo que causa perplexidade
do ponto de vista constitucional”. Segundo ele, a proposta “não parece casar
muito bem com a harmonia e independência entre os poderes”.
Como
ressaltou o jurista Pedro Serrano, colunista de CartaCapital, em artigo
publicado no Estado de S.Paulo, “se por um lado é verdade que nossa
Suprema Corte tem invadido competência do Legislativo (…), de outra há que se
considerar que não é por meio de inconstitucionalidades não republicanas que
nosso Legislativo resolverá o problema”.
Se os
projetos avançarem, a divisão de Poderes cairá num fosso institucional em que
juízes barram tramitação de projeto de lei e legisladores julgam o julgamento
da Corte. A cacofonia da situação descrita não limita o absurdo: no fim das
contas, o bate-boca sobre quem manda em quem é um terreno pavimentado para o
autoritarismo.
Extraído da Carta
Capital
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