Deixar-se
falar. Talvez tenhamos mais a dizer a nós mesmos que todos esses discursos de
sucesso ou de salvação. Entediar-se
Por Maristela
Bleggi Tomasini
Gosto de
dispor de tempo para entediar-me à vontade. Entediar-se é fazer contato com a
própria interioridade e abrir-se às nossas cismas. É romper relações com a
mesmice do ambiente e entregar-se a um diálogo imaginário. É dar-se conta
daquela multiplicidade de facetas tão nossas, que colocamos de lado, que não
deixamos que venham à tona em um mundo que só tem tempo para desperdiçar.
Entediar-se é não fugir à tristeza, é aceitar que existem, em nosso interior,
dimensões escuras, estranhas aos outros e nós, mas nem por isso menos a gente mesmo.
É olhar-se de frente no espelho mágico que não sabe mentir. Tédio é tempo de
colar o que foi fragmentado, é tempo de arredondar os cantos lascados pela
vida. Sem disfarces.
Entediar-se é ausentar-se dos outros. É tempo para ser vivido, e não
para ser desperdiçado com gente que se esvazia de si, que vive de presentes.
Sem passado que nos dê sentido, perde-se significado. Desaparecemos,
assimilados pela opinião, compartilhando apenas o que é comunitário. A solidão
aterroriza, mas não devia. Há tantas vozes disputando nossos ouvidos que não é
difícil nos flagrarmos, em dado momento, a repetir alguma coisa simplesmente
por repetir. Como se fôssemos obrigados a falar, mesmo sem ter nada a dizer. De
algum modo, pressinto discursos que se constroem a partir do eco. Sua fonte se
perdeu. Como se reflexos se tornassem autônomos. Dou com algumas imagens de mim
por aí às vezes, mas nem por isso sou eu. Então percebo que é hora do culto.
Que é hora de buscar conforto no tédio, na deriva de alma. Hora de imitar o flâneur,
só que percorrendo minha própria interioridade.
Percebo como é difícil pensar a vida sem unidades de medida. É que
antigos valores não há mais. Tudo tem preço. Instituíram-se moedas de troca que
capitalizam relações entre diferentes tribos, estas que hoje se substituem às
extintas classes sociais. Temos apenas faixas de consumo, cuja medida de escala
é a quantidade de eletrodomésticos, de banheiros, de suítes, de metros
quadrados disputados centímetro a centímetro. Também vale contabilizar maridos
e mulheres que se substituem por modelos mais novos, mais adequados a um vir a
ser midiático de efeito hipnótico, multiplicado pelos espelhos das vitrines,
esses altares, onde os produtos, como os santos, são objeto de adoração. Cobiça
e desejos nos guiam e amesquinham nossas ambições recheadas de sabores que
ainda não provamos, de substâncias que ainda não tocamos, de brinquedos com que
ainda não brincamos. Tudo isso nos afasta de nós, e nos aproxima de miragens
que desaparecem, mal a gente consegue tocá-las. A saída é o tédio, a
alternativa possível diante dessa fatalidade que se autorregula
automaticamente.
Prescinde-se de valores que não sejam aqueles expressamente monetários.
A atualidade nos põe preço, e isso sequer nos escandaliza, porque nosso tempo é
tão-somente o tempo da emergência do sensacional, da manchete hiperbólica, da
banalização de tudo. A fama e o prestígio legitimam qualquer conteúdo. Elas são
a alquimia do sucesso. A ingenuidade torna-se cretina. Importa apenas o
sensacional, o que pode ser taxado, comprado e vendido. Persegue-se a reparação
indenizatória como forma de ajuste, numa atualidade que é sem ligação com o
passado e que se vê apenas repetida no futuro, mecanicamente, produtivamente.
O presente é repetir-se, é copiar-se, é apropriar-se de experiências
pré-formatadas. A atualidade traz o prêt-à-porter como traz o prêt-à-penser.
Monetarizamos o valor da dor. Alguém deve pagar por nossos sofrimentos, por
nossas angústias, por nossas frustrações. A Declaração Americana, desde 1948,
quer que o homem alcance a felicidade. Como se ela fosse um objetivo a ser
atingido. Recusar-se a tanto significa fracasso. O tédio é o refúgio dos
fracassados, o exílio dos recalcitrantes, dos que desconfiam das pílulas que
prometem a felicidade, o ego químico, o tesão eterno, a carne siliconada.
Desconfio muito desse ambiente. Envelheço. Estranho este mundo que avança sobre
a minha vida e que me convida a mudar de mim, a desviar-me de meu velho e
conhecido eu, tão inadequado. Sou obsoleta. Escrevo este palavrão agora e não
gosto. Mas o espelho mágico do tédio me reflete bem assim. Não consigo gostar
muito dessas maravilhas todas que a gente só pode ter se comprar. Desconfio
dessas coisas que nos tornam felizes, atraentes, inteligentes e que garantem
nosso sucesso. Isso não me soa bem. É como perfume usado em demasia. Esses
excessos são, definitivamente, faltos de elegância. O requinte costuma mostrar
uma face aristocrática que é, sempre, um pouco decadente e blasé. Nada a
ver com esses espetáculos pleonásticos que nos invadem a cada instante. Sem
falar numa gente muito estranha que por aí.
Um garoto chinês vendeu um rim para poder comprar um iPad. Há uma jovem
que investe seus melhores anos em sucessivas operações para substituir próteses
mamárias por outras cada vez mais volumosas. Ela deseja ter os maiores seios do
mundo. Não sei se conseguiu. Implanta-se tanta coisa no corpo! Ele está cada
vez mais tatuado, colorido, transformado. Um rapaz cortou a língua, para que
ela ficasse bifurcada como a de um lagarto. Descubro algo novo nisso. O tédio
me faz pensar.
Ora, os artistas sempre representaram a figura humana conformada a
valores de época. A rigidez das madonas medievais deu lugar às carnes rosadas
da Renascença. A isso sobrevieram as sombras e os contrastes do Barroco. El
Greco redimensionou as imagens, esticou as figuras para ao alto. A Arte nos
conta a história dos homens, economizando palavras. Ah! Os impressionistas
coloriram nossas sombras. O ser humano já perdia forma e diluía-se no fundo das
telas. Aliás, desde então, fundo e forma se confundem, porque não mais se vai
desvincular um do outro. Depois mudamos ainda mais. Desesperamos. Van Gogh
resgata o louco. Os corpos começam a ser retorcidos. Basta folhear um livro de
arte qualquer para dar-se conta disso. Na modernidade, Portinari conferiu a pés
e mãos um peso excepcional, ao retratar um homem que era só força física
empregada no trabalho braçal. Anita quase suprimiu a cabeça em Abaporu, um
anencéfalo que sobreviveu perfeitamente bem; aliás, como muitos, até hoje.
Por que digo isso? Porque era só arte. Era uma figura humana limitada ao
espaço plástico da tela ou do material tornado escultura. Era apenas faz de
conta. Não passava de metáfora, de uma interpretação. A pós-modernidade inovou.
Hoje é o corpo que recebe esses impactos. Não se trabalha mais a imagem em
abstrato. Fazemos isso concretamente no próprio corpo-objeto. Confesso meu
susto. Eu me refugio no tédio, bem aqui, entrincheirada por entre livros e
velharias. De fato, olhando assim, parece que o corpo se transforma em suporte
físico de manifestações só fazem sentido por muito pouco tempo. Percebo algo de
assustador em tudo isso.
Por mais que essas intervenções corporais aconteçam como manifestações
de ordem cultural na humanidade, historicamente, tratou-se de costumes e
tradições inerentes a certos grupos humanos. Tudo tinha uma razão de ser,
correspondendo a ritos de passagem. Eram formas de agir, pensar e fazer que se
impunham como obrigatórias com vistas à manutenção de uma ordem social,
conferindo estabilidade a um grupo. Sabemos de tatuagens tribais, pescoços
alongados, lábios e orelhas alargados, mas em contexto que me parece muito
diferente deste que estamos vivendo. Não se tratava do corpo pelo corpo, do
corpo objeto de si, mas do corpo como identidade social. Esse viés, no entanto,
se adensa na pós-modernidade, e não encontro paradigma que não seja ver aí o
consumismo puro e simples. Nosso corpo se assimila a um objeto de consumo que
precisa se transformar com a mesma rapidez com que sobrevém a novidade
vanguardista que já nos chega como passado. As próprias tribos têm muita
mobilidade. São instáveis. As modificações que se imprimem aos corpos, nem
tanto. Isso indica que nosso agora é para sempre, um fim em si, como se não
houvesse gerúndios, apenas particípios que se seguem uns aos outros, repetidos,
reiterados, desconexos, desvinculados, que emergem como eventos.
Produzir, consumir, deixar-se assimilar corporalmente como fetiche.
Percorrer o tempo esvaziando-o de significação. Ser o melhor, o maior, o mais
ágil, o mais rápido, o recordista. Ser por ser. Bater um recorde qualquer.
Cultura resumida a eventos descontínuos que exibem uma logomarca que vale mais
que a assinatura do artista. Até livros se escrevem sozinhos na cultura do copy
& past. A produção da palavra limita-se a discorrer apenas, e a criar
vazios repletos de hermetismo, de pirotecnia literária, onde o efeito importa
mais que o significado. Escreve-se com vistas ao utilitário. A moda se impõe
também nas palavras, e elas se substituem umas pelas outras, depostas e
exiladas, pela inquisição que se impõe ao nosso léxico, exigindo dele que se
limite a discursos publicitários, que exercitam meramente a persuasão. O banal
torna-se profundo. É preciso aplaudir e delirar, sob pena de ser decretada
nossa insensibilidade. É preciso ser estúpido, para alcançar a profundidade
inaudita do que é óbvio. Por isso talvez eu insista em permanecer tão
superficial.
Confesso que fujo. Eu me entrego ao tédio, busco a solidão que me ensina
a lidar com o tempo. Preciso fazer valer meu próprio ritmo e preservá-lo como
algo profundamente individual. O meu tempo é o meu tempo, e eu gosto de
conferir-me a prerrogativa de escolher como usá-lo. É um grande luxo gastar meu
tempo com tédio. Saborear o meu café, sentir o cheiro de mofo de cada um dos
meus livros, não fazer nada a não ser ouvir o que tenho a dizer a mim mesma.
Deixar-se falar. Talvez tenhamos mais a dizer a nós mesmos do que todos
esses discursos de sucesso ou de salvação. Entediar-se. Permitir-se
entristecer. Tédio é solitário, é lacônico, é modulado pelo silêncio. Nem
alegre nem triste, mas existencial. Tédio é sem consolo, sem compreensão,
porque nele não penetra a palavra divina que salva, nem a tentação do demônio
que condena, nem a pregação do marqueteiro que quer vender aquilo que todo
mundo já tem, menos a gente. Solidão é grátis. É despedida sem adeus. Sem nada.
É apenas nossa presença, permanecendo ainda, não obstante todas as coisas que
nunca foram aquilo que queríamos ou que pensávamos que elas fossem.
É bem quando descubro que, apesar de tudo, eu ainda sou eu.
Extraído do site OUTRAS PALAVRAS
Zan, idiota, se toca que ninguém aqui lê esse tipo de blá blá blá, cara...
ResponderExcluirA questão é que o "aqui" pra quem eu ponho esses blá blá blás, não é exatamento aqui na nossa paroquiazinha, anônimo...
ResponderExcluirAté porque na nossa paroquiazinha acontecem coisas que se são ilicitudes ou não ninguém sabe.Quem espertamente as pratica, fica cheio da razão, diz que prova com documentos e que tudo não passa de blá blá blá.Na China um garoto vendeu um rim para comprar um ipad.Na nossa paroquiazinha tem gente que dar a alma ao capeta para conseguir poder, prestígio e dinheiro.E busca assim a felicidade.Ao seu modo.E blá blá blá.
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