De tanto que se falou sobre os
evangélicos nas últimas semanas, nos jornais e nas redes sociais, talvez caiba
uma pergunta: afinal, quem são “os evangélicos”?
por Ricardo Alexandre — publicado 07/09/2014
07:40
Silas Malafaia e Martins Luther King são faces da mesma moeda? |
Homofóbicos,
cortejados pela presidente, fundamentalistas.Massa de manobra de Silas Malafaia,
conservadores, determinantes no segundo turno das eleições. De tanto que se
falou sobre os evangélicos nas últimas semanas, nos jornais e nas redes
sociais, talvez caiba uma pergunta: afinal, quem são “os evangélicos”?
A resposta mais
honesta não poderia ser mais frustrante: os evangélicos são qualquer pessoa,
todo mundo, ou, mais especificamente, ninguém. São uma abstração, uma
caricatura pintada a partir do que vemos zapeando pelos canais abertos
misturado ao que lemos de bizarro nos tabloides da internet com o que nosso preconceito manda
reforçar. Dizer que “o voto dos evangélicos decidirá a eleição” é tão estúpido
quanto dizer a obviedade de que 22,2% dos brasileiros decidirão a eleição. Dizer que “os
evangélicos são preconceituosos”, significa dizer o ser humano é
preconceituoso. É não dizer nada, na verdade.
Acreditar que
há uma hegemonia de pensamento, de comportamento ou de doutrina
evangélica é, em parte, exatamente acreditar no que Silas Malafaia gosta de
repetir, mas é, em parte, desconhecer a história. A diversidade de pensamento é
a razão de existir da reforma protestante. E continuou sendo pelos séculos
seguintes, quando as igrejas reformadas do século 16 deram origem ao movimento
evangélico, estes aos pentecostais e estes aos neopentecostais, todos
microdivididos até o limite do possível, graças, novamente, à diversidade de
pensamento – sobre forma de governo, vocação e pequenos pontos doutrinários.
Boa parte destas, sem organização central, sem “presidência” nem representante,
com as decisões sendo tomadas nas comunidades locais, por votação democrática.
Assim como não
existe “os evangélicos” também não existe “os pentecostais”, nem “os
assembleianos”: dizer que Malafaia é o “papa da Marina Silva” como disse
Leonardo Boff, apenas porque ambos são membros da Assembléia de Deus, é ignorar
que, por trás dos 12,3 milhões de membros detectados pelo IBGE, a Assembleia de
Deus é rachada entre ministérios Belém, Madureira, Santos, Bom Retiro,
Ipiranga, Perus e diversos outros, cada um com seu líder, sua politicagem e sua
aplicação doutrinária. A Assembleia de Deus Vitória em Cristo de Malafaia,
aliás, sequer pertence à Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil.
Ignorância
parecida se manifesta em relação ao uso do termo “fundamentalista”, como
sinônimo de “literalista”, aquele incapaz de metaforizar as verdades morais dos
textos sagrados. A teologia cristã debate há dois mil anos sobre a observação,
interpretação e aplicação dos escritos sagrados, quais são alegóricos e quais
são históricos, quais são “poesias” e quais são literais. O deputado Jean Wyllys,
colunista da Carta Capital, do alto de alguma autoridade teológica
presumida, já chegou à sua conclusão: o que não for leitura liberal, é
fundamentalista e, portanto, uma ameaça às minorias oprimidas. (Liberalismo
teológico é uma corrente teológica do final do século 19 que lançou uma leitura
crítica das escrituras, completamente alegorizada, negando sua autoridade
sobrenatural, a existência dos milagres, e separando história e teologia).
Só que isso
simplesmente não é verdade. Dentro da multifacetação das igrejas de tradição
evangélicas, há as chamadas “inclusivas”, mas há diversas igrejas históricas,
tradicionais, teologicamente ortodoxas, que acreditam nos absolutos da “sola
scriptura” da Reforma Protestante, mas que têm política acolhedora e amorosa
com as minorias. Algumas criaram pastorais para tratar da questão homossexual,
outras trabalham para integrá-los em seus quadros leigos; outros, como disse o
pastor batista Ed René Kivitz, estão mais dispostos a aprender como tratar “uma
pessoa que está diante de mim dizendo ter sido rejeitado por sua família, pelo
meu pai, pela minha igreja” do que discutir a literalidade dos textos do Velho
Testamento.
O panorama da
questão pode ser melhor entendido em Entre a cruz e o arco-íris: A complexa
relação dos cristãos com a Homoafetividade (Editora Autêntica), livro qual tive
a honra de editar. Nele, o pastor batista e sociólogo americano Tony Campolo,
ex-conselheiro do presidente Bill Clinton, diz: “Se você vai dizer à comunidade
homossexual que em nome de Jesus você a ama (...) não teria que lutar por
políticas públicas que demonstrem que você as ama? Pode haver amor sem justiça?
Eu luto pela justiça em favor de gays e lésbicas, porque em nome de Jesus
Cristo eu os amo.” Campolo, entretanto, faz distinção entre direitos e
casamento: “O governo não deve se envolver nem declarar, de forma alguma, o que
é casamento, quem pode ou não se casar”, ele disse. “Governo existe para
garantir os direitos das pessoas. Casamento é um sacramento da igreja –
governos não devem decidir quem deve ou não receber esse sacramento.” Campolo
acredita que esta será a visão dominante entre cristãos americanos “em cinco ou
seis anos”.
Entre os
evangélicos brasileiros há quem pense desde já como Campolo – distinguindo
união civil de casamento. Há quem pense de forma ainda mais radical: que a
união civil, com implicações patrimoniais e status de família, deveria valer
não apenas para casais homossexuais, mas para irmãos, primos ou quem quer que
se entenda como família. Há quem defenda o acolhimento dos gays nas igrejas,
mas o celibato para eles. Quem, embora sabendo que mais da metade das famílias
brasileiras já não são no formato pai-mãe-filhos, ainda luta para restabelecer
esse padrão idealizado. Há, sim, quem acredite que o seu conjunto de doutrinas
e o seu modo de vida são fundamentais. Há aqueles que, enquanto estamos
discutindo aqui, está mais preocupado se a melhor tradução do grego é a João
Ferreira de Almeida ou a Nova Versão Internacional. E há quem acorde
diariamente acreditando ser porta-voz do “povo de Deus”, pague espaço em redes
de televisão para multiplicar esse delírio (mas, a julgar pelo 1% de intenção
de voto do Pastor Everaldo, somente ativistas gays e jornalistas desmotivados
acreditam nesse discurso). Esses são “os evangélicos”.
Na fatídica
sexta-feira em que o PSB divulgou seu programa de governo, enquanto Malafaia
gritava no Twitter em CAPSLOCK furibundo, o pastor presbiteriano Marcos
Botelho, postou: “Marina, que bom que vc recebeu os líderes do movimento LGBTs,
receba as reivindicações com a tua coerência e discernimento de sempre e um
compromisso com o estado laico que é sua bandeira. Vamos colocar uma pedra em
cima dessa polarização ridícula entre gays e evangélicos que só da IBOPE para
líderes políticos e pastores oportunistas.”
Botelho não
representa “os evangélicos” porque não existe “os evangélicos”. Mas Marcos
Botelho existe e é evangélico. Assim como existe William Lane Craig, o filósofo
que convida periodicamente Richard Dawkins para um debate público, do qual este
sempre se esquiva; existe o geneticista Francis Collins vencendo o William
Award da Sociedade Americana de Genética Humana; existe Jimmy Carter, dando
aula na escola bíblica no domingo e sendo entrevistado para a capa da Rolling
Stone por Hunter Thompson na segunda-feira; existe o pastor congregacional
inglês John Harvard tirando dinheiro do próprio bolso para fundar uma
universidade “para a honra de Deus” nos Estados Unidos que leva seu sobrenome;
existe o pastor batista Martin Luther King como o maior ativista de todos os
tempos; existe o jovem paulista Marco Gomes, o “melhor profissional de
marketing do mundo”, pedindo licença para “falar uma coisa sobre os evangélicos”. E existe o Feliciano, o
Edir Macedo, a Aline Barros, o Thalles Roberto, o Silas Malafaia e o mercado
gospel. Como existe bancada evangélica, mas existem os que lutaram pela
“separação entre igreja e estado” na constituição, e existem os que acreditam
que levar Jesus Cristo para a política é trabalhar não para si, mas para os
menos favorecidos.
Existe o amor e
existe a justiça, como existe o preconceito, o dogmatismo, o engano, o medo, a
vaidade e a corrupção. Não porque somos evangélicos, mas porque somos humanos.
* Ricardo
Alexandre é jornalista e escritor, radialista e blogueiro,
Prêmio Jabuti 2010, ex-diretor de redação das revistas Bizz, Época São Paulo e
Trip. E é membro da Igreja Batista Água Viva em Vinhedo, interior de São Paulo.
Extraído da Carta Capital
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